O Sacerdócio na Roça Itaussu

Como em muitas Casas, o direito sacerdotal é parte da distribuição e comunhão de responsabilidades de um casal, quando os dois são sacerdotes. É o caso da nossa Casa. Falamos de Tatetu Corodegi, Juvenal de Ògúm e Nengua Ominlodecy, Solange de Ósún. Ambos com histórias e caminhos bem diversos, mas que o destino e o amos – são casados –  tratou de unir na vida e no exercício sacerdotal e de administração da Roça.

Com tamanhos, importâncias e autoridades idênticas, ambos exercem singular e pluralmente a gestão e a sacralização dos iniciados e cargos da Casa. Ou seja, Pai Juvenal tem seus filhos e Mãe Solange da mesma forma os seus. Mas todos são filhos da mesma Casa e assim, por extensão apesar de filhos de um ou outro, são todos filhos dos dois. Pois ambos participam de todos os atos praticados tanto nas iniciações quanto nas confirmações de obrigações.

Tatetu Corodegy (Pai Juvenal de Ógùn)

Pai Juvenal traz suas origens sacras da matriz do Candomblé brasileiro, a Bahia. Nasce para o Sagrado em 1985, na Fazenda Lageado, na cidade de Poções, pelas mãos de Pai Almir. Entretanto, não demorou muito para que fosse recebido na Casa Sede do Ramo familiar, ou seja, barracão da Fazenda do Buraco do Boi, também em Poções, onde recebeu das mãos do memorável Pai Ulisses a sua Cuia, os direitos em obrigação de 7 anos. Na ocasião, Nengua Adiran foi sua Mãe Pequena. Mais tarde esta seria encarregada de acolher os filhos de santo da Casa em seu seio, desta vez no estado da Paraíba, enquanto a Fazenda do Buraco do Boi se tornava no hoje reconhecido e respeitado Terreiro de Umbanda da Fazenda do Buraco do Boi – separavam-se os ritos e cultos.

Pai Ulisses era filho de Santo de Mãe Raquel, da cidade de Nazaré das Farinhas, neta de santo da própria Maria Neném, fundadora do Inzo Tombeicy, a primeira casa de culto Congo-Angola das Américas. Foi Mãe Raquel que concedeu a Pai Ulisses o direito para “trabalhar”, ou seja, ele recebeu a “Faca de Cotó”, como é chamado a “Cuia”, obrigação de 7 anos nas Nações Amburaxó. O que lhe deu o direito de exercer a função de Zelador de Terreiro

Este terreiro é o mais antigo daquela região. Está situado às margens da rodovia BA 262, no sentido Nova Canaã, a uma distância aproximada de 20 km da sede do município de Poções (Bahia). Esse nome peculiar envolve um misto de mito com explicações reais embasadas na oralidade dos membros mais antigos da casa. A narrativa conta que um vaqueiro “corria” um boi e, de repente, o boi e o cavalo caíram em um buraco, mas apenas o vaqueiro salvou-se. Depois disso, todos começaram a chamar o lugar de “buraco onde o boi caiu”, ou simplesmente “buraco do boi”. O mitológico é porque quem teria salvado o vaqueiro seria o Caboclo Boiadeiro, entidade que hoje é o chefe da casa.

O terreiro foi fundado pelo próprio Babalorisá Ulisses Gonçalves Campos, Pai Ulisses (13/03/1915 – 30/06/1998). E é o mais antigo dade toda a região.

Em entrevista concedida em 2012, a esposa de Pai Ulisses, a senhora Ormezinda Pereira Campos, Mãe Mesa à época com 89 anos, completamente lúcida e dona de um conhecimento oral ímpar acerca da história da casa, dos filhos de sangue e filhos de santo que por lá passaram ou ainda estão, foi relatada toda a trajetória de vida do esposo até tornar-se um pai de santo e ter mais de mil filhos de santo, tornando-se um dos zeladores mais conhecidos da região. Ainda hoje seu nome é lembrado como um referencial por aqueles que com ele conviveram:

Morávamos no Espírito Santo, área de Sertão (município de Poções), antes de virmos para essa região aqui da Mata (área de transição entre a Caatinga e a Zona da Mata Atlântica). Meu marido, quando aqui chegou, tentou mudar esse nome de “Buraco do Boi” para “Três Riachos”, mas ninguém chamava assim e continuou com o primeiro nome. Quando aqui cheguei, construímos a primeira casa, que foi feita de barro batido. Viemos embora para cá por causa da seca e, nesse mesmo tempo, foi aberta a estrada para chegar nessa área. A estrada que vai para Nova Canaã. Meu marido não mexia com essas coisas de santo ainda não. Bebia muito, passava por dificuldades e amigos dele o aconselhavam a procurar tratamento em casa de pessoas entendidas. Ele ia, mas não gostava e acabava não indo mais. Certo dia, de noite, quando dormíamos, foi quando aconteceu a primeira incorporação dele. Foi quando um “guia” Mineiro/Nagô pegou ele e disse que ia chegar a hora dele mudar de vida e que ele ia trabalhar. E me pediu para guardar este segredo, que não contasse a ninguém e que na hora certa eu iria revelar para a pessoa certa. Passados alguns anos, ficamos sabendo da existência de uma senhora chamada Raquel, que era mãe de santo e que estava vindo para Poções a trabalho na casa de filhos do terreiro dela. Foi quando falei para Ulisses que ele deveria procurá-la para uma consulta ou uma conversa. De início, ele não quis, mas acabou concordando em ir ao encontro dessa senhora. Quando chegamos à casa em que essa senhora estava hospedada, já na chegada ele me perguntou o que eu estava querendo que ele fosse falar com essa mulher. Quando na consulta, os guias dele desceram em terra e mandou me chamar para que eu dissesse ou revelasse o segredo. Desse dia em diante, tudo mudou. Ele, dentro de um intervalo de dois anos mais ou menos, ele começou a trabalhar e abriu este terreiro aqui que você está vendo”.

Quando interrogada sobre quais Orisás Pai Ulisses recebia e costumava trabalhar, ela disse:  Sangô, Ogum-de-Lei Mineiro, Caboclo Tupinambá, Arrieiro (Caboclo Boiadeiro), Omolú, Ogum do Tempo, Cigana Mineira, dentre outros.  Sendo que cada uma destas entidades tinha um papel diferente a ser desempenhado dentro do terreiro, no momento da consulta.

Este terreiro (com mais de 60 anos de existência) é matriz de vários outros que surgiram ao longo da sua existência, não só no Estado da Bahia como também nos estados de Pernambuco e da Paraíba.  Como dito anteriormente, no seu auge chegou a ter mais de mil filhos, netos e bisneto-de-santo. 

Fonte: Arquivo do terreiro de candomblé do Buraco do Boi

Pai Ulisses e alguns de seus filhos de santo.

No ano de 1998, mais precisamente no mês de Junho, o então Babalorisá Ulisses Gonçalves Campos veio a falecer, ficando a casa fechada durante o período do luto.  Assim, assume o seu lugar o seu filho de sangue, Eurivelton Pereira Campos, dando uma nova configuração à casa sem perder de vista os ideais da mesma. 

Em 2004, já em São Paulo, renovou suas obrigações e tomou seu Odu-Ikà, (14 anos) com o Babalorisá Ney d’Oşun, que havia sido iniciado por Pai Toninho de Ógùn, e posteriormente deu continuidade de suas obrigações com Tatetu Sambaquecy, filho de santo de Locy e neto de Santo de Boacy, da mesma raiz de Tombeicy de onde se iniciou em Poções. Em 2020 Pai Juvenal completou suas obrigações postulares com o Babalorisá Nicanor de Odé.

Nengua Ominlodecy (Solange d’Osun)

Tudo começa em 1989. Mãe Solange se iniciou pelas mãos de Pai Anselmo de Oyà, filho de santo de Mãe Santina Toledo, que era filha de santo de Babalorisá Vivaldo de Logun-Ede (Odé Ikutie – O Caçador que não teme a morte). Que por sua vez fora iniciado em  24 de Dezembro de 1950 pelas mãos do saudoso e reconhecido Babalorisá Waldemiro de Sangò, Pai Baiano que fora iniciado em 1933 por Pai Cristóvão de Ogunjá do Axé Oloroke – Nação Efon, que por sua vez teve sua iniciação pelas mãos da própria Maria Bernarda da Paixão ( -1936) (Adebolu), ex-escrava fundadora do Terreiro do Oloroke em Salvador, Bahia, por volta de 1860 (era mais conhecida como “Maria Violão”), juntamente com seu marido e também ex-escravo conhecido como Tio Firmo de Osum-Tadê ou Babá Erufá ( – 1905). Na Bahia. Com Pai Anselmo Mãe Solange tomou as primeiras obrigações, 1, 3, e 5 anos.

Após o falecimento precoce de Pai Anselmo, e a família do Babalorisá, que não pertenciam ao Candomblé resolverem fechar a Casa e encerrar as atividades, Mãe Solange, muito por conta também de sua trajetória acadêmica e profissional manteve-se afastada por alguns anos da religião. Entretanto não era esta a vontade de Osun, que se manifestou com clareza em 2004. Foi neste ano que Osun escolheu Pai Tangecy, Carlos dos Anjos, também filho de santo de Sambaquecy, Pai Zuza de Osun Karé, para tomar seus 7 anos, seu Odu-Ijé. Já em 2013, com a Roça Itaussu em pleno vapor, tomaria seu Odu-Iká, 14 anos com Pai Rique de Badagri, iniciado por Sambaquecy e pai pequeno de Tangecy, hoje do Jeje-Mahi, filho de Dancy de Bessem, já falecido, do Asé Seja Hunde, Roça do Ventura. E em 2020 os 21 anos, também com Pai Rique de Badagri encerrando as obrigações postulares.

Tanto Pai Juvenal de Ogum quanto Mãe Solange d’Osun entendem muito bem a importância da raiz de nascedouro e o respeito à ancestralidade, que dão o suporte basilar da estrutura de culto e soberania sacerdotal. São sacerdotes dedicados, amados, responsáveis e muito bem inseridos numa sociedade que ainda não compreende de maneira correta a pluralidade das opiniões e fé.

Com esta herança soberana e muito bem documentada, tanto Pai Juvenal de Ogum, quanto Mãe Solange d’Osun, administram de maneira exemplar a Roça Itaussu.

Uma casa acolhedora

Uma casa de culto, seja ela uma igreja ou um templo de qualquer religião é, antes de tudo um pronto socorro para as mazelas da vida. E se torna com o tempo um refúgio para a vida atribulada que vivemos no nosso cotidiano. A busca por paz interior é a válvula de escape para conseguirmos completar a jornada que nos é imposta pela vida.

Uma casa precisa, antes de tudo ser acolhedora, ser o berço onde nossas almas e espíritos possam descansar em paz em companhia de pessoas que nos ofereçam a destra fraternal. Uma mão que nos possa estender nos momentos de maior necessidade, ou mesmo uma família que nos acolham em seu seio.

Assim é a Roça Itaussu. Um lugar que pode sim ser chamado de paraíso. Uma casa onde todos são iguais, independentemente de suas escolhas, raça, ideologia, poder aquisitivo ou mesmo gêneros de sexualidade. Todos são iguais e assim são tratados.

É uma casa de culto antes de tudo. E o respeito ao sagrado e o divino está estampado na natureza que são as paredes do Inzo, (Casa), e formam a essência do Egbé (família). Pertencer à esta família de pessoas normais, comuns, mas com o propósito de buscarem o aperfeiçoamento de suas vidas e condutas, nos faz refletir sobre a essência da vida.

Uma casa encravada na Serra do Mar, com a natureza a nos saldar entre vegetação nativa e animais silvestres a comer nas nossas mãos é o que nos aproxima muito mais do divino, do sagrado.

Os sacerdotes, Mãe Solange d’Òşún e Pai Juvenal d’Ógùn são amáveis, caridosos e receptivos. Da mesma forma que todos os Egbòns (antigos) da casa. Por serem os príncipes da comunidade, seguem as diretrizes dos sacerdotes. As de serem da mesma forma carinhosos, caridosos e solícitos.

Façam uma visita à Roa Itaussu. Com certeza será uma experiência fascinante que mudará a sua vida.

Um paraíso encravado na Serra do Mar

Em setembro de 2013 o Jornal Aweto definiu assim o que naquela época ainda era somente o Ilé Égbè Òmò Ògun-Ósun, “Um paraíso encravado na Serra do Mar”. Era uma reportagem de cobertura da primeira Kukuana da Casa. Apesar do jornalista já conhecer a Casa – o repórter em tela é este que escreve estas letras emocionadas – ficou estupefato com a beleza da noite naquele barracão de madeira retirada da própria floresta. A luz da lua incidindo sobre o lago com sua linda ponte que conduzia à beleza da dança dos deuses da natureza numa comunidade simples e genuflexa diante de toda a exuberância da criação. O canto dos pássaros, o som da floresta intacta, a luz das estrelas, o cheiro da selva em seus perfumes mais encantadores.

            Era uma casa de madeira, um altar em homenagem aos ancestrais encantados, filhos de santo com suas roupas brancas e simples, uma sacerdotisa e um sacerdote que logo se notava serem mais que isto. Eram na verdade um pai e uma mãe no sentido literal das palavras. Ali estava realmente um Egbè, no sentido transladado real do termo iorubano, ou seja, uma comunidade, uma família. Ali estava com a mais clara manifestação o lar dos deuses da natureza, com toda sua simplicidade e majestade, um oásis num mundo mal e turbulento, um refúgio para os doloridos de alma e coração, um paraíso onde deuses e homens dançam juntos e comem na mesma mesa.

            A reforma mais que necessária em 2015 substituiu os troncos que serviam de parede por alvenaria, mas não o encantamento encravado nas fundações de uma Casa fundada por deuses. Ali ainda brilhavam os olhos de Osun e do ferro reluzente da armadura, do escudo e da espada de Ogum. O prédio ficou maior, mais lindo, mais majestoso. Entretanto a magia pura e soberana dos deuses ainda ali podem ser sentidas. Força contagiadora, que positiva as almas e os espíritos, que acolhem os incautos e dá de beber aos sedentos de cura espiritual.

            Os poucos filhos de santo de 2012, quando da Kukuana reportada pelo supracitado jornal, hoje são algumas centenas. Pessoas de todos os rincões que buscam neste pedaço de céu o conforto para seus males e a paz de espírito e que exala das flores e emana do lago sagrado. Buscam na sabedoria e na simplicidades de seus sacerdotes o encanto das divindades antigas a evolução espiritual para conduzir suas vidas com paz e devoção. Aliás, devoção é a palavra que define de maneira cabal a Casa.

            Mas nem sempre foi assim. Na verdade tudo começou numa sala de um sobrado na Vila Bocaina, Mauá-SP. O ano era 2004, e esta era a sala de estar da própria residência do casal Solange e Juvenal. Um casal até então normal, com vidas seculares. Ele um caminhoneiro e negociador e ela uma diretora de escola. Levavam suas vidas como uma família de classe média comum. Até que os Orisás e Encantados intervieram em suas vidas pacatas. Afinal, eram iniciados e tinham as suas responsabilidades sacerdotais. Assim, por força divina começaram a “atender” em sua sala. E é claro, quando a vontade não é nossa e sim de deuses e seus encantados, a suma se torna evidente. Ou seja, a sala ficou pequena. Foi quando em 2006 partiram para outro lugar, Parque Primavera, Rua das Azaleias, 73, também em Mauá. Lugar maior, com um bom salão, onde podiam receber mais pessoas em busca de refúgio e cuidados espirituais. Mas como os nossos planos quando são colocados ao serviço espiritual deixam de serem nossos, surgiu a oferta de compra de um pedaço de Mata Atlântica na Serra do Mar. Avenida Dona Benedita Franco da Veiga, 3201, Bairro Feital, à época um verdadeiro “fim de mundo”. Na divisa com Ribeirão Pires, onde não havia nada, senão floresta fechada. Um terreno montanhoso e encravado em pedras gigantescas. Aparentemente impossível de receber qualquer edificação. Mas os edificadores não eram deste plano humano, eram deuses. E assim, o “fim de mundo”, como muitos chamaram o pedaço de floresta recebeu seu primeiro morador. Pai Juvenal trouxe e assentou seu Tranca-Ruas, e para fazer-lhe companhia Pandora e Thor, seu casal de Rottweiler. Se desfizeram de todos os seus bens, instalaram uma barraca de camping em meio ao lamaçal, e o fusca, a única coisa que lhes sobrou. E ali estava o casal, chamado de “loucos” numa empreitada chamada de “impossível”.

            Pedras gigantescas foram retiradas, porções de terra retiradas e uma floresta domada. Não demorou para o “fim de mundo” se transformasse no paraíso encravado na Serra.

            Os primeiros filhos não tardaram a chegar. Os primeiros egbons também não. Os Orisás e os Encantados, felizes pela obra chamada de impossível derramaram todo o Asé para este templo sagrado.

            Hoje a Roça Itaussu é uma das mais lindas e conceituadas Casas de Orisá do ABC e de São Paulo. Tem seu nome lembrado e reconhecido em todo o Brasil. É a mais rica e contundente prova de que, quando os Orisás decidem eles oferecem as condições necessárias e a força para que a empreitada seja concluída.

Aweto Zambi Katumendará.

Tata Zezinho França do Kabilah – Tawa-lawesi

MTb. 37.785-SP